Prolegômeno à relativização da presunção de inocência*

Que a presunção de inocência é um princípio inderrogável, que a presunção de inocência é um dos mais importantes alicerces do Estado de Direito não há margens para dúvida. Também é indubitável que essa garantia alterou completamente a postura do Estado em face de um crime. A história dos direitos humanos fundamentais é profícua na narrativa da evolução desse tratamento. Por isso mesmo, quem tem compromisso e responsabilidade com a democracia e os direitos humanos jamais poderá se opor a esse marco na história penal.

Pois bem. O próprio Supremo Tribunal Federal em decorrência da aplicabilidade do princípio de presunção inocência, ou estado jurídico de inonência (como alguns preferem dizer) se manifestou no sentido de que nenhuma pessoa suspeita de praticar um fato delitivo possa vir a sofrer qualquer ingerência do ius puniendi até o momento do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Todavia, como diria Levi-Strauss, nos trópicos há uma mania de sair de um extremo e ir para outro. A terrea brasilis (permissa venia, Streck) é, possivelmente, o país onde o princípio de presução de inocência é elevado a um pedestal maior e indevassável. Em países como EUA, França, Inglaterra e outros, a garantia constitucional processual penal de presunção inocência admite restrições, por exemplo: o afastamento do cargo público ou até mesmo a prisão do suspeito. Aliás, já virou prêt-à-porter a afirmação segundo o qual não existem direitos fundamentais absolutos (quase-dogma da teoria dos direitos fundamentais?). Nisso, Sérgio Moro, juiz federal, em brilhante passagem, expôe “caso se entenda que a presunção de inocência exige um julgamento definitivo, não mais passível de revisão, chegar-se-ia à situação esdrúxula de nunca admitir-se a prisão, pois mesmo um julgamento final está sujeito, sem prazo, à revisão criminal em hipóteses específicas”.

As críticas de Streck no plano teorético são importantes na medida em que fomentam o debate acadêmico e doutrinário (diga-se de passagem: o que ele tem tanto contribuído). De fato, atribuir à presunção de inocência normatividade jurídica de regra (“all or nothing” para falar de Dworkin e Alexy) é confundir ou, nas suas palavras, equivocar-se a respeito do bifurcamento epistemológico elaborado na distinção lógica dos dois enunciados. Contudo, como salientado por Streck, não se está a discutir o mérito, o qual, no meu modo de ver, não se alterará ainda que os fundamentos e argumentos explanados pelo Min. Fux sejam conceitualmente distorcidos.

O que eu quero dizer é: será que o princípio da presunção de inocência faz sentido, na sua compleição clássica dos idos do liberalismo dezoitista, diante do avanço da mentalidade atinente à moralidade e à eficiência da coisa pública? Alguns poderiam objetar afirmando que se trata de mais uma tentativa de moralizar o direito por meio de um (neo)qualquercoisa. Bem de ver que a presunção de inocência, cujas origens são tão nobres, dignas, tinham por escopo garantir a lealdade, a eticidade e a máxima proteção do indivíduo. No entanto, esses subprodutos da inocência vem sendo distorcidos, com o intuito de produzir o efeito reverso, quer dizer, legitimando na ágora práticas perniciosas e contraproducentes. Sem mencionar, o fato de que no Brasil garantismo penal tem sua clientela e preferência.

O mesmo Supremo, no RE 568030 (link:http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=568030&classe=RE&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M) já consignou inteligência que confronta com o que foi ventilado (para usar de um eufemismo):

“Desse modo, entendeu-se que reconhecer que candidato assim limitado preencha o requisito da idoneidade moral, necessária ao exercício do cargo de policial, não é pertinente, o que afasta qualquer ofensa ao aludido princípio da presunção de inocência.”

Penso que Sólon estava correto: “as leis são como as teias de aranha: os insetos pequenos nelas se enredam; os grandes partem-nas sem dificuldade.”

* A ideia de escrever esse pequeno texto veio do artigo de autoria de Lenio Streck – http://www.conjur.com.br/2011-nov-17/ministro-fux-presuncao-inocencia-regra-nao-principio

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