Animais não humanos têm Direitos Fundamentais?

“Podemos julgar o coração de um homem pela forma como ele trata os animais.” (Immanuel Kant)
“Chegará o dia em que um crime contra um animal será considerado um crime contra a própria humanidade.” (Leonardo da Vinci) 
“E o que dizer dos novos posicionamentos em relação aos animais? Debates sempre mais freqüentes e amplos, referentes à licitude da caça, aos limites da vivissecção, à proteção de espécies animais tornadas cada vez mais raras, ao vegetarianismo, o que representa senão os primeiros sintomas de uma possível extensão do princípio da igualdade para além mesmo dos limites do gênero humano, uma extensão fundada sobre a consciência de que os animais são iguais aos homens pelo menos na capacidade de sofrer?”  (Norberto BobbioDireita e esquerda: razões e significados para uma distinção política) 

Isaac Newton, um dos maiores físicos que a história nos legou, em carta enviada a seu amigo Robert Hooke, escreveu: “se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes”. Decerto, só conseguiremos observar nitidamente a realidade que nos circunscreve se estivermos no alto da pelagem do coelho, a fim de que assim não nos aprisionemos na fossilização do conhecimento.

Uma pessoa portadora de deficiência mental não possui menos direitos pelo fato de ser deficiente, afirma o filósofo Peter Singer. A sua insuficiência cognitiva não a exime de ser qualificada como sujeito de direito. A esse respeito, a ciência, induvidosamente, se manifesta no sentido de que o homem é um ser racional, aliás, esse seria um dos poucos truísmos do conhecimento científico, qual seja, todo o pensamento jurídico ocidental se funda na construção ética pautada pela consagração de direitos e deveres aos seres humanos. Não é por menos que as teorias em geral se direcionam para tal conclusão. Mas, seres diferentes de nós coabitam a esfera terrestre e seriam eles destituídos de titularidade jurídica? Dito de outro modo, arguir que um ser tem direitos é afirmar que esse ser tem estatuto moral.

Como se vê é consenso que as pessoas têm estatuto moral, mas não imputamos o mesmo a objetos inanimados comuns, como os celulares e os livros. Podemos ter o dever de não deteriorar um vade mecum, por exemplo. Todavia não parece que possuimos esse dever para com o próprio livro. Se temos esse dever, é porque o livro pertence a alguém que não quer vê-lo destruído. Assim, o dever que envolve o livro é em verdade, um dever em face do proprietário – penso que esteja superada a discussão segundo a qual só quem tem deveres tem direitos. Só este último é portador de um estatuto moral. É este o núcleo do pensamento filósofico de Imannuel Kant que, no século XVIII, o fez aduzir:

Os animais não têm consciência de si e existem apenas como meio para um fim. Esse fim é o homem. Podemos perguntar “Por que razão existem os animais?”. Mas perguntar “Por que razão existe o homem?” é colocar uma questão sem sentido. Os nossos deveres em relação aos animais são apenas deveres indirectos em relação à humanidade. […] Assim, se um homem abater o seu cão por este já não ser capaz de o servir, ele não infringe o seu dever em relação ao cão, pois o cão não pode julgar, mas o seu acto é desumano e fere em si essa humanidade que ele deve ter em relação aos seres humanos. Para não asfixiar os seus sentimentos humanos, tem de praticar a generosidade em relação aos animais, pois aquele que é cruel para os animais depressa se torna rude  também no modo de lidar com os homens. Podemos julgar o coração de um homem pelo modo como ele trata os animais. (Excerto de Lições sobre Ética incluído em Tom Regan e Peter Singer, orgs., Animal Rights and Human Obligations, 2.ª ed., Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1989, pp. 23-24.)

Da forma como Kant sustenta, o trinômio moral, razão e liberdade inclina-se, tão só, aos seres humanos. Tais predicados não podem, de maneira alguma, transcender a esfera da racionalidade e autonomia das pessoas humanas. O filósofo alemão entende que os maltratos aos animais não humanos devem ser unicamente vedados por força da lesividade cominada a nós, seres humanos. Por esse raciocínio, poderíamos ponderar na mesma linha, que fetos humanos e seres humanos em estado vegetativo ou inconsciente – a lista é longa – não têm direitos por conta da inexistência de um desses três elementos. Fato é que discussão não se restringe a uma perspectiva, não sendo mais admissível uma visão monolítica e unidimensional do fenômeno.

Por outro lado, importantes estudos têm surtido efeitos nessa polarizada discussão. O filósofo australiano Peter Singer parte de um pressuposto/premissa: a igualdade enquanto condição de ser e existir não se destina a uma única espécie, porém a todas as espécies vivas, afligidas pela dor – detentoras do sopro da existência. O filósofo, em seu livro “A Libertação Animal”, adverte: “Todos os animais são iguais”. Podemos pensar que alguém que desconsidera essa premissa estaria a ignorar e mostrar a patente pretensão de desigualdade na medida em que relega a outros, sob o mesmo parâmetro de igualdade, uma condição moralmente extemporânea.

Segundo Singer, a raíz dessa igualdade reside na capacidade de sofrer, isto é, os animais podem sofrer, logo têm direitos (aqui comporta uma observação para esclarecer desde já que não implica pensar que todos os animais das outras espécies conhecidas, incluindo as ostras e as moscas têm direitos). Muitas experiências são feitas com animais: colocam um cão vivo numa espécie de forno e vão aquecendo pouco a pouco até que o cão não aguente o calor e frite, literalmente; descargas elétricas são aplicadas em ratos para aferir o comportamento do animal diante de tal eventualidade. Enfim, são tantos testes e pesquisas científicas realizadas em cobaias animais com resultados infímo no avanço do conhecimento científico dirigido ao ser humano.

A noção antropológica do direito remete-nos a a assunção de que a ciência jurídica tem como fundamento e fim a pessoa humana.  O princípio antrópico formulado por Sagan, as noções antropocêntricas e outras inúmeras teorias humanistas que deslocam o homem para o epicentro da órbita jurídica, filosófica, biológica, cultural e ambiental reflete, sobremaneira, sobre a concepção reinante do ser humano. Parece que seria então necessária uma nova ferida narcisística nos moldes da primeira ferida (Galilei Galileu), segunda (Darwin), terceira (Freud) e quarta (Einstein) para que caiamos novamente desse pedestal indevassável e inexpugnável da soberania humana.

O filósofo inglês Jeremy Bentham numa passagem de sua obra afirmara: Mas um cavalo ou cão completamente desenvolvido é, sem sombra de comparação, um animal mais racional e mais interligado do que uma criança de um dia, uma semana ou até um mês de idade. Mas, supondo que o caso fosse o contrário, isso seria válido? A questão não é nem se eles possuem razão, nem se eles podem falar. Mas sim: eles podem sofrer?

O que precisa ser colocado é que os animais também têm de serem respeitados de igual modo e consideração. A ordem jurídico-constitucional nada versa no que concerne a essa proteção, do ponto de vista de serem os próprios animais não-humanos sujeitos de direito. Desse modo, aos que propugnam tal tese carece-lhe base legal para sustentá-la. A Constituição da República dispõe de um capítulo referente à tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado (capítulo VI do Título VIII, com o artigo 225, parágrafos e incisos), valor este impregnado pela relevância de um ambiente estável que proporcione, em última instância, o bem-estar humano. O artigo 225 da Constituição brasileira positivou uma norma que determina o poder público, para assegurar a efetividade desse direito, “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (art. 225, § 1º, inc. VII, da CF/88). A jurisdição constitucional, portanto, sob os auspícios da Carta de Outubro, dá guarida aos animais no que pertine ao parâmetro de proteção ambiental.

O Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre o tema no emblemático caso “A farra do boi” – RE 153531 de Santa Catarina. Pode-se depreender que o argumento utilizado foi justamente tendo em vista a formação ambiental da criança, consentâneo ao cenário hodierno majoritário de que os animais não humanos não são portadores de direitos fundamentais em razão de não possuirem personalidade jurídica, mas serem bens jurídicos (semoventes) de interesse coletivo. No mesmo sentido, o STF já declarou a inconsticionalidade de artigos estaduais que regulamentavam a chamada “briga de galo”, entendendo que essa prática viola o dever estatal previsto no artigo no art. 225 da Lei Fundamental.

No último dia 6 de agosto de 2011, foi aprovada pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul uma lei que acrescenta um parágrafo único ao art. 2º da lei nº 11.915, de maio de 2003, que institui o Código Estadual de Proteção aos Animais, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul:

“Art. 2º………
Parágrafo único – Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. “
Sob a justificativa:
Diante dos direitos e deveres individuais e coletivos garantidos na Constituição Federal no art. 5º, especificamente no Inciso VI, ” é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias “, ou do Código Penal sobre os crimes contra o sentimento religioso em seu art. 208: ” Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, faz-se necessária a apresentação deste projeto de lei que define, em parágrafo único, a garantia constitucional que vem sendo violada por interpretações dúbias e inadequadas da Lei nº 11.915, de 21 de maio de 2003 que institui o Código Estadual de Proteção aos Animais. Face a essa dubiedade de interpretação, os Templos Religiosos de matriz africana vêm sendo interpelados e autuados sob influência e manifestação de setores da sociedade civil que usam indevidamente esta lei para denunciar ao poder público práticas que, no seu ponto de vista, maltratam os animais.

A conclusão que se extrai é a de que pode matar animais em rituais religiosos e afins por ser uma manifestação de caráter religioso. A religião, desse modo, autorizaria a matança de seres animais. Sem adentrar a matéria religiosa, que assim como a superstição, a crendice e qualquer outra expressão de credulidade não está imune a regulações, limites existem porquanto são produtos da própria ordem sócio-jurídica. Contudo, a prática equivale-se ao desmatamento e a caça, atitudes crassamente violadoras e desastrosas à permanência das espécies, o que nos dizeres de Abraham Lincoln, não interessa nenhuma religião cujos princípios não melhoram nem tomam em consideração as condições dos animais.

Sujeito é quem sofre ou realiza uma ação. Animais sofrem e realizam ação. Parece que a positivação jurídica da postura moral de reconhecimento do animal não humano como sujeito merecedor de respeito e garantia de vida seja paulatino. Os gregos na figura da deusa Gaia, representando a mãe terra, reconheciam a importância das forças da natureza, pois sabiam do poder que a natureza continha para a manutenção da vida.  Os animais não humanos devem angariar espaço no campo de consideração moral, isto é, de que não devemos matá-los, maltratá-los etc. Sob o enfoque ético-filósofico, as mudanças devem se orientar no sentido de alargamos e incluirmos os animais não humanos no universo dos titulares de direitos e obrigações.. No contexto do debate que ora se trava, esse se inscreve, não num âmbito puramente legalista, mas de direitos morais.

Poderíamos ainda nos alongar ao tratar do pensamento darwiniano, o qual permite abalizar que “seria espantoso que a consciência se restringisse aos seres humanos: isso significaria que a mente humana, extraordinariamente rica e complexa, teria irrompido do nada, por assim dizer, em vez de ter evoluído de forma muito lenta e gradual a partir de mentes mais simples de animais de outras espécies” (Pedro Galvão). Não obstante, a questão pode ser posta nos seguintes termos: nem só os seres humanos têm direitos vs. só os seres humanos têm direitos.

Apesar de toda as idéias suscitadas pró-animais, não se pode dizer que os animais não humanos sejam titulares de direitos fundamentais.  Os animais são objetos de tutela constitucional e, por conseguinte, constituem bens e interesses jurídicos a serem resguardados pelo fato de possuírem condições de seres vivos, mas não são genuínamente sujeitos de direitos, pelo menos sob a égide e o corolário normativo do direito constitucional brasileiro, que não detém qualquer preceito normativo que remeta a essa conclusão. Entretanto, em nada diminui ou reduz o anseio -olhando por cima dos ombros do gigante – da legitimidade pela luta da inclusão jurígena de todos os seres vivos como merecedores de determinados direitos.

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